Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se tocam.
Deleuze, Diálogos, 1998, p.10.
Metodologia da Pesquisa
A pesquisa Devir Criança orienta-se pela perspectiva genealógica de Michel Foucault e apresenta uma peculiaridade interessante: não se contenta em vasculhar os documentos de maneira neutra. Ao contrário, faz questão de apontar uma direção desde o seu título: a criança apontada enquanto devir e a anormalidade enquanto acontecimento. Trata-se de enfocar as categorias da infância fora de qualquer absoluto, buscando apreender seu sentido no campo dos acontecimentos históricos, deixando de lado os significados acabados, inequívocos, naturais.
Buscar o ponto de surgimento, a emergência desses acontecimentos significa construir uma história do presente, ou ainda, uma genealogia do presente. É’ a importância que um objeto tem hoje que faz com que o pesquisador se debruce sobre ele e retorne ao seu passado para procurar os traços do seu começo. Questões que tiveram uma enorme importância no passado hoje podem não constituir configurações problemáticas. Mas, com fazer a historia do presente? Não é tarefa fácil. Um acontecimento surge num dado momento e se desdobra pela história nas inúmeras máscaras que o ‘carnaval do tempo’ faz reaparecer sem cessar. E a grande dificuldade está em estudar estas mudanças de maneira não evolucionista.. Ou seja, como pensar as chamadas anormalidades infantis enquanto categorias que se diferenciam historicamente sem buscar, nem para a infância nem para a anormalidade, qualquer identidade? É possível escapar de estabelecer algum tipo de sequência, continuidade e/ou evolução nas práticas de punição, segregação, higienização e pedagogização que se observam no Brasil entre os séculos XIX e XX? O demente, o idiota, a criança anormal, o delinquente não seriam faces distintas do mesmo objeto? Paul Veyne (1982) nos diz que “só a ilusão do objeto natural cria a vaga impressão de uma unidade”.
Neste sentido, a prática, noção central de uma nova metodologia da história, não é uma reação a um mesmo objeto que se encontra dado desde o início, algo que deva ser traduzido em uma verdade ou demonstração cabal de um conceito. A criança anormal não existe como objeto, mas somente no interior de uma prática que não é, em si mesma, a criança anormal. Entendamos, as práticas, longe de se referirem a um mesmo objeto, marcam um jogo de rupturas e dispersão, de tal maneira que, falar da identidade dos discursos sob as anormalidade infantis, é ao mesmo tempo, falar da descontinuidade que anula sua permanência. As práticas de internação e separação das crianças consideradas anormais recortam objetos diferentes daqueles que se delineiam nas práticas psiquiátricas, pedagógicas e jurídicas da atualidade. Embora se considere todo o processo histórico de composição que as constituíram, não se trata das mesmas crianças nem das mesmas anormalidades.
Esta pesquisa de fontes, ao propor o caminho genealógico de análise, pretende partir, como nos ensina Foucault, da “crítica do documento”, não para tomá-lo como o faz a história tradicional – instrumento de uma memória milenar e coletiva que expressa em si mesma a verdade de um passado do qual ela emana e permite reconstituir. É preciso tomar o documento não para restabelecer um discurso histórico sobre o já dado, onde as relações entre os fatos ou acontecimentos se definem por causalidade ou continuidade. A genealogia procura o acontecimento no jogo de forças que o engendra, no ”acaso da luta”, no abandono das essências colocadas fora do tempo, referência sempre presente que teima em nos apontar um sentido final para a história e uma identidade para nós mesmos. Ao invés da cronologia contínua da razão, fazer surgir a dispersão, integrando-a análise como elemento positivo que permite pensar a diferença, a singularidade do acontecimento.